Como em todas as situações clínicas, é necessário ter a formação e os conhecimentos científicos adequados à correta utilização de qualquer fármaco. "Só o conhecimento permite desfazer equívocos e serenar os espíritos. Qualquer agente terapêutico tem uma indicação precisa, doses e vias de administração aconselhadas pela medicina baseada na evidência. Esta lógica, aparentemente simples, aplica-se a todos os fármacos, incluindo, evidentemente, os opioides fortes", sublinha Sílvia Vaz Serra.
Os opioides fortes, cujo paradigma é a morfina, apresentam um perfil analgésico potente (estando, portanto, aconselhados
na dor de intensidade moderada a severa) e apresentam vários efeitos adversos, como náuseas, vómitos, prurido, obstipação, imunossupressão, alterações hormonais, sonolência, depressão respiratória, tolerância e dependência. Alguns destes efeitos secundários vão-se atenuando ou mesmo desaparecendo com a continuação da utilização do fármaco (caso da náusea, por exemplo), outros mantêm-se (obstipação). "O que mais questões e receios suscita é a possibilidade da dependência e da depressão respiratória", confirma a nossa interlocutora.
"Convém esclarecer o que se entende por dependência, distinguindo a dependência física da psicológica e do fenómeno
de tolerância", recomenda Sílvia Vaz Serra. E sublinha que, para a OMS, a toxicodependência compreende os seguintes elementos: (1) uma compulsão de consumir o produto; (2) uma tendência para aumentar as doses; (3) uma dependência psicológica e/ou física do(s) produto(s); (4) o surgimento de consequências nefastas sobre a vida quotidiana da pessoa (emotivas, sociais, económicas etc.).
"A dependência física e a tolerância podem manifestar-se isoladamente ou associadas, somando-se à dependência psicológica", explica a anestesiologista do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, adiantando que "o hábito é um dos aspetos importantes a ser considerado na toxicodependência, pois, a dependência psíquica e a tolerância significam que a dose deverá ser ainda aumentada para se obterem os efeitos desejados".
"Os estudos existentes demonstram percentagens muito díspares em relação ao risco de, em terapêuticas prolongadas, haver alteração/má utilização dos fármacos opioides", frisa, referindo que a grande maioria dos estudos atribui um risco residual, com melhoria significativa da intensidade da dor e da qualidade de vida, à utilização destes medicamentos.
"Diversos estudos têm-se debruçado sobre a importância da avaliação e estudo do perfil psicológico/psiquiátrico, através da utilização de questionários dos candidatos a estas terapêuticas. Vários questionários e análises têm sido testados, como forma de melhor seguir estes doentes", afirma Sílvia Vaz Serra, tendo sido, inclusive, questionada a utilidade de realização de um "contrato escrito".
Há a necessidade de efetuar estudos randomizados, com tempos de seguimento longos e com casuísticas significativas, mas uma boa seleção dos doentes permite uma eficácia terapêutica sustentada, com melhoria significativa de todas as vertentes da qualidade de vida. Quanto ao risco de depressão respiratória, "ela só ocorre se não houver adequação da dose do opioide à intensidade da dor", sendo certo que "a dor é o melhor antídoto para a depressão respiratória".
"Esta barreira, mito dos opioides, é referenciada pelos doentes, pelos familiares, pelos profissionais de saúde e pela sociedade em geral. Só a formação dos médicos e dos outros profissionais de saúde, formação pré e pós-graduada, colmatará esta falha" recomenda Sílvia Vaz Serra.
Texto original publicado no Jornal Médico nº 7, outubro de 2013